O inexistente impacto da tecnologia
Uso
intensivo da técnica é característica fundamental da humanidade
Pierre Lévy
Nos
textos de anúncio dos colóquios, nos resumos dos estudos oficiais ou nos
artigos da imprensa sobre o desenvolvimento da ''multimídia'', o assunto
tratado é muitas vezes o ''impacto'' das novas tecnologias de informação sobre
a sociedade ou a cultura.
A
tecnologia seria comparável a um projétil (pedra, obus, míssil?) e a cultura ou
a sociedade a um alvo ambulante... Essa metáfora balística é criticável por
mais de uma razão. Não se trata de avaliar a pertinência estilística de uma
figura de retórica, mas de tornar manifesto o esquema de leitura dos fenômenos
_para mim, inadequado_ que revela a metáfora do impacto.
Será
que as técnicas vêm de outro planeta, o mundo das máquinas, frio, sem emoção,
estranho a todo significado e valor humanos, como tende a sugerir uma certa
tradição intelectual? Parece-me, ao contrário, que não só as técnicas são
imaginadas, fabricadas e reinterpretadas para uso dos homens, mas que é a
própria utilização intensiva das ferramentas que constitui a humanidade como
tal (juntamente com a língua e as instituições sociais complexas).
É
o mesmo homem que fala, enterra seus mortos e talha a pedra. Propagando-se até
nós, o fogo de Prometeu cozinha os alimentos, endurece a argila, funde os
metais, alimenta a máquina a vapor, corre nos cabos de alta tensão, fervilha
nas centrais nucleares, explode nas armas e nos equipamentos de destruição.
Pela
arquitetura que o abriga, o reúne e o inscreve na Terra; pela roda e pela
navegação que lhe abriram os horizontes; pela escritura, pelo telefone e cinema
que o infiltram de signos; pelo texto e pelo tecido que, tramando a variedade
de matérias, de cores e de sentidos, desdobram ao infinito as superfícies
onduladas, luxuosamente dobradas, de suas intrigas, de seus estofos, de seus
véus, o mundo humano é desde sempre técnico.
Será
a tecnologia um autor autônomo, separado da sociedade e da cultura, uma
entidade passiva, detonada por um agente exterior? Sustento, ao contrário, que
''a técnica'' é um ângulo de análise dos sistemas sociotécnicos globais, um
ponto de vista que acentua a parte material e artificial dos fenômenos humanos,
e não uma entidade real, que existiria independentemente do resto, teria
efeitos distintos e agiria por si própria.
Mesmo
se supusermos a existência efetiva de três entidades _técnica, cultura e
sociedade_ em vez de pôr o acento sobre o ''impacto'' das tecnologias,
poderíamos muito bem argumentar que as tecnologias são produtos de uma
sociedade e de uma cultura. No entanto, a nítida distinção entre cultura (a
dinâmica das representações), sociedade (as pessoas, seus vínculos, suas
trocas, suas relações de força) e técnica (os artefatos eficazes) não pode ser
mais que conceitual. Nenhum agente, nenhuma ''causa'' verdadeiramente
independente, corresponde a ela.
Consideramos
meios intelectuais indiretos como agentes porque há grupos reais que se
organizam ao redor destes cortes verbais (Estados, grandes empresas,
ministérios, disciplinas científicas, departamentos universitários,
laboratórios de pesquisa) ou porque certas forças têm interesse em espalhar que
tal problema é ''puramente técnico'' ou ''cultural'', ou ainda ''puramente
econômico''. As verdadeiras relações não se travam, portanto, entre ''a''
tecnologia (que seria de ordem da causa) e ''a'' cultura (que sofreria os
efeitos), mas entre uma multidão de agentes humanos que inventam, produzem,
utilizam e interpretam diversamente as técnicas.
Por
trás das técnicas, no meio delas, agem e reagem idéias, projetos sociais,
utopias, interesses econômicos, estratégias de poder _o espectro inteiro dos
jogos humanos em sociedade. Assim, toda afetação de um sentido unívoco da
''Técnica'' só pode ser duvidosa. A ambivalência ou a multiplicidade de
significados e projetos envolvendo as técnicas é especialmente evidente no caso
numérico.
O
desenvolvimento de cibertecnologias é encorajado pelos Estados, em busca do
poderio, em geral, e da supremacia militar, em particular. Ele é também a
aposta máxima da competição econômica mundial entre as firmas gigantes da
eletrônica e da informática, entre os grandes conjuntos geopolíticos. Mas ele
responde, igualmente, às finalidades dos idealizadores e usuários, que buscam
aumentar a autonomia dos indivíduos e redobrar suas faculdades cognitivas. Ele
encarna, enfim, o ideal de cientistas, artistas, administradores ou ativistas
da Rede, que desejam melhorar a colaboração das pessoas, que exploram e fazem
viver diferentes formas de inteligência coletiva e distribuída. Por vezes,
esses projetos heterogêneos entram em conflito uns com outros, mas, com
frequência ainda maior, alimentam-se e reforçam-se mutuamente.
As
disposições de desejo tramam-se em meio às relações de força econômicas ou
sociais, entre dispositivos materiais ou informatizados. Dinâmicas subjetivas e
situadas criam ''máquinas culturais'' portadoras e produtoras de sentido, que
são indissoluvelmente técnicas e sociais.
Uma
técnica não é boa nem má (isto depende dos contextos, dos costumes, dos pontos
de vista), nem neutra (já que ela é condicionante ou constringente, já que ela
abre aqui e fecha acolá o leque de possibilidades). Não se trata de avaliar os
''impactos'', mas de descobrir o irreversível a que tais usos nos conduziriam,
as ocasiões que ela nos permitiria lançar mão e formular os projetos que
explorariam as virtualidades de que ela é portadora, de decidir o que faremos
com ela.
Contudo,
acreditar numa total disponibilidade das técnicas e de seu potencial para os
indivíduos ou as coletividades pretensamente livres, esclarecidas e racionais,
seria acalentar ilusões. Em geral, no instante em que deliberamos sobre os
possíveis usos de uma dada tecnologia, os modos operacionais já se acham
impostos.
Mesmo
antes de tomarmos consciência, a dinâmica coletiva cava seus atrativos. Quando
nos damos conta, já é muito tarde... Enquanto nos interrogamos sobre as
tecnologias visíveis e já imersas nos hábitos, outras tecnologias emergem na
fronteira nebulosa em que se inventam as idéias, as coisas e as práticas. Essas
tecnologias são ainda invisíveis, talvez à véspera da extinção, talvez fadadas
ao sucesso. Em tais zonas de indeterminação se desenrola o futuro; grupos de
idealizadores obscuros, de apaixonados, de empresários audaciosos tentam com
toda a força dar rumo ao porvir... Nenhum agente institucional de vulto _Estado
ou empresa_ planejou deliberadamente, nenhuma grande mídia previu ou anunciou o
desenvolvimento da informática pessoal nem o das interfaces gráficas interativas
para todos, nem o dos BBS ou dos suportes informáticos de comunidades virtuais,
nem o dos hipertextos e do World Wide Web, nem o dos programas de criptografia
pessoal inviolável.
Essas
tecnologias, impregnadas de seus usos originários e dos projetos de seus
criadores, nascidas no espírito de visionários, sustentadas pela efervescência
dos movimentos sociais e das práticas de base, chegaram de onde nenhum ''juiz
supremo'' os aguardava. Ora, as tecnologias em questão são o espaço cibernético
contemporâneo.
Pierre Levy é sociólogo e historiador da
ciência, professor do departamento de hipermídia da Universidade de Paris 8,
autor de ''As Tecnologias da Inteligência'' e ''O Que É o Virtual'' (ed. 34). Ele
escreve mensalmente.
Referência:
LÉVY,
Pierre. “O inexistente impacto da
tecnologia”: uso intensivo da técnica é característica fundamental da humanidade. Tradução de José Marcos Macedo. Folha de São
Paulo, Caderno MAIS!, 17 ago. 1997, p.5-3.
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